Bispos maçons e a intenção sacramental

Por Padre Anthony Cekada


Bispos maçons e a intenção sacramental por Padre Anthony Cekada

Sumário


Uma antiga lorota sobre a ordenação de Dom Lefebvre

Os que não são teólogos nunca parecem entender quão pouca intenção requer-se para um sacramento [...]. A intenção implícita de fazer o que Cristo instituiu significa uma coisa tão vaga e ínfima que é quase impossível deixar de tê-la — a não que ela seja deliberadamente excluída. No tempo em que todos falavam das ordens anglicanas, vários católicos confundiram intenção com . A fé não é requerida. É heresia dizer que o é (Foi esse o erro de São Cipriano e Firmiliano contra o qual o Papa Estêvão I [254-257] protestou). Um homem pode ter opiniões completamente errôneas, heréticas e blasfemas quanto a um sacramento e, ainda assim, conferi-lo ou recebê-lo validamenteAdrian Fortescue, The Greek Fathers

No fim da década de 1970, à medida em que os sacerdotes da Fraternidade São Pio X começaram a oferecer Missa em mais e mais cidades, certos polemistas no movimento tradicionalista dos E.U.A. começaram a difundir a estória de que o fundador da Fraternidade, o Arcebispo Dom Marcel Lefebvre (1905-1991), fora ordenado, tanto ao sacerdócio quanto ao episcopado, por um maçom e que as próprias ordenação sacerdotal e sagração episcopal do Arcebispo eram inválidas, e que, conseqüentemente, todos os sacerdotes da FSSPX também eram invalidamente ordenados.

O suposto maçom em questão era o Cardeal Achille Liénart (1884-1973), Arcebispo de Lille (cidade natal de Dom Lefebvre), mais tarde um dos líderes modernistas no Concílio Vaticano Segundo (1962-1965).

O finado Hugo Maria Kellner, a hoje defunta publicação Veritas, Hutton Gibson e alguns outros — nós os chamávamos de “lienartistas” — argumentavam que, dado que a maçonaria abomina a Igreja, seus adeptos entre o clero iriam naturalmente querer destruir o sacerdócio mediante a retenção da requerida intenção sacramental ao conferirem as Ordens Sacras. Defendiam eles que todas as ordenações conferidas por prelados maçons tinham de ser tratadas ou como inválidas ou como duvidosas, incluindo a ordenação sacerdotal e sagração episcopal que o Arcebispo Dom Lefebvre recebeu do Cardeal Liénart.

Dado que a estória da “maçonaria” ainda resurge ocasionalmente mesmo trinta anos depois, decidi revisitar a questão. Como começar? A melhor maneira é esclarecendo as partes componentes do argumento lienartista.

Pode-se fazer isso colocando-o na forma de um argumento lógico formal chamado “silogismo” — um método empregado nos manuais de teologia dogmática. Um silogismo argumenta indo de uma afirmação geral (por exemplo: Todos os homens são mortais), para uma afirmação particular (Sócrates é homem), para uma conclusão (Logo, Sócrates é mortal).

Você precisa provar tanto sua afirmação geral quanto sua afirmação particular. Do contrário, você não prova a sua conclusão. Ao condensarmos o argumento dos lienartistas e o colocarmos nessa forma, obtemos o seguinte:

  1. Princípio geral: Sempre que um Bispo for maçom, sua intenção sacramental deve presumir-se duvidosa e todas as ordenações dele, portanto, devem ser presumidas duvidosas.
  2. Fato particular: Achille Liénart foi um Bispo que era maçom.
  3. Conclusão: A intenção sacramental de Achille Liénart deve presumir-se duvidosa e todas as suas ordenações, portanto, devem ser presumidas duvidosas.

A suposta “prova” do ponto número 2 foi mais do que adequadamente demolida alhures. Foi demonstrado que todas as histórias acerca da suposta afiliação maçônica do Cardeal Liénart remontam a uma única obra, L’Infaillibilité Pontificale, do Marquês de la Franquerie, um escritor sensacionalista francês. A única fonte que o Marquês dá para a história é anônima: um ex-maçom identificado como “Sr. B...” (ver mais sobre isso no Anexo deste artigo)

Aqui, dirigiremos nossa atenção antes ao ponto número 1, o princípio geral por trás do argumento lienartista. Demonstrarei que ele é falso, pois contradiz as presunções fundamentais que a lei canônica, a teologia moral e a teologia dogmática estipulam com respeito à validade dos sacramentos em geral e à intenção do ministro das Sagradas Ordens em particular. Além disso, demonstrarei que ele contradiz a prática da Igreja no passado e conduz a absurdidades manifestas.

1. Presunção geral de validade. Os sacramentos conferidos por um ministro católico, inclusive as Ordens Sacras, devem presumir-se válidos enquanto a invalidade não for provada. Isto é:

a rainha das presunções, que considera válido o ato ou o contrato, até que a invalidade seja provada” (F. Wanenmacher, Canonical Evidence in Marriage Cases, [Philadelphia:Dolphin 1935], 408).

“Quando o fato da ordenação está devidamente estabelecido, a validade das ordens conferidas tem naturalmente que ser presumida” (W. Doheny, Canonical Procedure in Matrimonial Cases [Milwaukee: Bruce 1942] 2:72).

2. Intenção e Ordens Sacras. Quando um Bispo confere Ordens Sacras usando corretamente a matéria e a forma, deve presumir-se que ele teve intenção sacramental suficiente para confeccionar o sacramento – isto é, no mínimo que ele “teve a intenção de fazer o que a Igreja faz”. Este é o ensinamento do Papa Leão XIII em seu pronunciamento sobre as ordens anglicanas:

“Ora, se uma pessoa usou séria e devidamente a matéria e a forma corretas para realizar e administrar o sacramento, dessa pessoa por esse mesmo fato presume-se que possui a intenção de fazer o que a Igreja faz” (Bula Apostolicae Curae, 13 de setembro de 1896).

O teólogo Leeming diz que essa passagem recapitula os ensinamentos dos antigos teólogos que

“concordaram todos que a realização exterior decorosa dos ritos estabelece uma presunção de que a intenção certa existe [...]. Do ministro de um sacramento é presumido o intencionar aquilo que o rito significa [...]. Esse princípio é afirmado como doutrina teológica certa, ensinada pela Igreja, e negá-lo seria no mínimo teologicamente temerário” (B. Leeming, Principles of Sacramental Theology [Westminster MD: Newman 1956], 476, 482).

3. Heresia ou apostasia e intenção. A heresia, ou mesmo a completa apostasia da fé por parte do Bispo que ordena, não prejudica essa intenção suficiente, pois a intenção é um ato da vontade.

“O erro na fé, ou mesmo a total descrença, não prejudica essa intenção; pois os conceitos no intelecto nada têm em comum com um ato da vontade” (S. Many, Praelectiones de Sacra Ordinatione [Paris: Letouzey 1905], 586).

4. Quando a intenção invalida. Uma ordenação, pelo contrário, realizada corretamente torna-se inválida apenas se o bispo fizer um ato de vontade de não “fazer aquilo que a Igreja faz” ou de não “ordenar tal pessoa”.

“Uma ordenação é inválida se o ministro [...] ao conferi-la a alguém, faz um ato volitivo de não ordenar aquela pessoa, pois por esse fato mesmo ele não tem, no mínimo, a intenção de fazer aquilo que a Igreja faz — de fato, ele tem uma intenção contrária” (P. Gasparri, Tractatus de Sacra Ordinatione [Paris: Delhomme 1893], 1:970).

5. Intenção inválida jamais presumida. Um bispo que confere Ordens Sacras, no entanto, nunca é de presumir que tenha uma tal intenção de não ordenar, até que o contrário fique provado.

“Ao realizar uma ordenação, o ministro nunca é presumido como quem não tem uma tal intenção de não ordenar, enquanto o contrário não for provado. Pois a ninguém se presume o mau, a não ser que ele seja provado tal, e um ato — especialmente um tão solene quanto uma ordenação — deve ser considerado válido, contanto que a invalidade não seja claramente demonstrada” (Gasparri, 1:970).

Porém, o princípio geral proposto pelos lienartistas, “sempre que um Bispo for maçom, sua intenção sacramental deve presumir-se duvidosa e todas as ordenações dele, portanto, devem ser presumidas duvidosas”, contradiz diretamente o supracitado e estabelece a presunção oposta.

Assim, essa teoria trata um acusado “bispo maçom” como culpado até que se o prove inocente (seus sacramentos devem ser tratados “como não-sacramentos”). E o ônus da prova que ele tem de satisfazer para absolver-se é impossível: ele tem que refutar uma dupla negativa sobre um ato interior da vontade (“prove que você não subtraiu sua intenção”).

Isso se choca com todos os princípios de equidade da lei civil e canônica.

6. Nenhum apoio na teologia. Por essa razão, os lienartistas não são capazes de citar nenhum canonista, teólogo moralista ou dogmático pré-Vaticano II que proponha ou defenda a premissa maior deles.

Ao invés disso, tudo que eles apresentam são as citações padrão sobre a maçonaria: ela conspira para destruir a Igreja, é condenada pelos Papas, promove o naturalismo, é causa de excomunhão etc. Isso meramente prova aquilo que ninguém contesta: a maçonaria é má. Mas, dado que homens maus e mesmo incrédulos podem conferir sacramentos válidos, isso não os aproxima nem um pouco de provar o princípio que é a base de seus argumentos: “Membro da maçonaria = sacramentos duvidosos”.

Se um tal princípio geral fosse verdadeiro, os Papas, canonistas e teólogos nos teriam dito.

7. Nenhum apoio na história. A desculpa que às vezes se dá para não fornecer uma citação dessas – “não era amplamente conhecido o que estava acontecendo [acerca do clero maçom] até que os frutos foram mostrados no Vaticano II” – é refutada pela história da Igreja na França, onde muitos clérigos eram maçons. Na França antes da Revolução:

“Um fato é irrecusável: as lojas contaram muitos e muitos eclesiásticos [...]. Em Caudebec, dos vinte e quatro membros da loja, quinze eram padres; em Sens, dos cinquenta, vinte eram. Cônegos e párocos associavam-se às Assembléias Veneráveis. Os próprios cisterciense de Claraval tinham uma loja em seu mosteiro! Saurine, futuro bispo de Estrasburgo no tempo de Napoleão, era um dos membros dirigentes do Grande Oriente. Se dissermos que, por volta de 1789, um quarto dos maçons franceses era clérigo, não devemos ficar longe da verdade [...]. [Em 1789 havia] 7 ateus e 3 deístas dentre 135 bispos” (H. Daniel-Rops, The Church in the Eighteenth Century [London: Dent 1960] 63, 73. See also J. McManners, Church and Society in Eighteenth-Century France [Oxford: University Press 1998] 1:354, 356, 420, 509).

Os revolucionários maçons fundaram sua cismática Igreja Constitucional em 1791 com clérigos como esses, o mais proeminente deles sendo Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, ex-bispo de Autun e defensor da causa revolucionária.

Diferentemente do caso do Cardeal Liénart, é fato consolidado que Talleyrand era maçom: ele pertencia à loja Francs Chevaliers em Paris. Além disso, ele provavelmente era até um incrédulo. Em 25 de janeiro de 1791, Mons. Talleyrand sagrou os primeiros Bispos para a Igreja Constitucional, e assim todos os Bispos dela subsequentemente derivaram dele suas sagrações.

Mesmo assim, quando o Papa Pio VII assinou sua Concordata de 1801 com Napoleão, ele nomeou treze bispos da hierarquia de Talleyrand para encabeçar as dioceses católicas restauradas.

Dentre eles, o supramencionado Mons. Jean-Baptiste Saurine, cismaticamente sagrado Bispo “constitucional” de Landes em agosto de 1791. De todas as lojas maçônicas do mundo, o Grande Oriente de Paris, no qual Saurine era membro dirigente, sempre foi considerada a mais poderosa e mais anticatólica. Apesar disso, o Papa Pio VII nomeou Mons. Saurine bispo de Estrasburgo em 1802, um posto que esse bispo maçom reteve até a morte, em 1813.

Assim, na França encontramos bispos maçons sagrando bispos outros maçons, a quem o Papa depois nomeia para chefiar dioceses católicas, onde eles crismam crianças, abençoam os santos óleos usados para ungir os moribundos, ordenam padres e sagram outros bispos. Se o princípio dos lienartistas estivesse mesmo correto, o Papa não teria permitido nada disso, e teria insistido que todos os bispos da hierarquia Constitucional se sujeitassem à sagração sob condição.

Ademais, a prova de que um clérigo estivesse afiliado à maçonaria não necessariamente é prova de ateísmo ou ódio à Igreja. Dos muitos clérigos franceses envolvidos com a maçonaria, o historiador Henri Daniel-Rops afirma:

“Não há nenhuma razão para pensar que todos fossem, ou julgassem ser, maus católicos. Muito pelo contrário. Deviam ser bem numerosos aqueles que não viam qualquer incompatibilidade entre a sua fé e a sua inscrição maçônica, e que chegavam a ter a maçonaria por uma força a ser utilizada ao serviço da religião. Tal era o caso, na Savóia, de Joseph de Maistre, orador da sua loja em Chambéry, o qual aspirava criar na maçonaria um estado-maior secreto que fizesse do movimento um exército papal, ao serviço de uma teocracia universal” (Church in the Eighteenth Century, 63).

Ainda que a adesão de muitos clérigos franceses à maçonaria durante a época revolucionária fosse bem conhecida, os teólogos não trataram os seus sacramentos como “duvidosos”. Se bispos maçons houvessem verdadeiramente constituído uma ameaça à validade dos sacramentos, esperar-se-ia encontrar teólogos, especialmente entre os franceses, que propusessem esse argumento, ou ao menos debatessem a questão.

Mas mesmo teólogos e canonistas franceses tais como o Cardeal Billot (De Ecclesiae Sacramentis [Roma: Gregoriana 1931] 1:195-204), S. Many (Prael. de Sacr. Ordinatione 585-91) e R. Naz (“Intention”, Dictionnaire de Droit Canonque [Paris: Letouzey 1953] 5:1462), que no mais discutem um tanto longamente a intenção sacramental, nada têm a dizer, em absoluto, acerca de sacramentos “duvidosos” de maçons.

Em seu artigo sobre a maçonaria, além disso, o único comentário de Naz, sobre os clérigos que dela são membros, é notar que eles incorrem nas penas de suspensão e perda de ofício (“Francmaçonnerie,” 1:897-9). Ele não diz nada sobre a pertença deles tornar “duvidosos” os seus sacramentos.

8. Consequências absurdas. A absurdidade do princípio dos lienartistas é demonstrado também aplicando-o (a) à hierarquia dos Estados Unidos, onde ele tornaria duvidosas quarenta sagrações episcopais realizadas entre 1896 e 1944, e (b) ao baixo clero na França, onde ele tornaria duvidosos todos os batismos realizados desde o século XVIII.

(a) As sagrações episcopais nos Estados Unidos são derivadas de Mariano Cardeal Rampolla del Tindaro (1843-1913), Secretário de Estado do Papa Leão XIII. Depois da morte de Rampolla, diz-se que entre seus pertences de uso pessoal encontrou-se prova de que ele pertencia a uma seita maçônica luciferiana chamada Ordo Templo Orientalis (associada ao satanista Alistair Crowley) e frequentava uma loja maçônica em Einsiedeln, na Suíça, onde ele tirava férias.

Quarenta Bispos americanos sagrados entre 1896 e 1944 derivaram suas sagrações de Rampolla, via Mons. Martinelli (Delegado Apostólico) ou Rafael Cardeal Merry del Val, ambos sagrados Bispos por Rampolla (Ver Jesse W. Lonsway, The Episcopal Lineage of the Hierarchy in the United States: 1790–1948, placa E.)

Se o princípio dos lienartistas fosse verdadeiro, todos esses Bispos teriam de ser considerados “duvidosos”, pois o papel preciso dos Bispos auxiliares numa sagração episcopal como verdadeiros “co-consagrantes” não foi claramente definido antes de 1944.

(b) Mostrei que a maçonaria estava amplamente disseminada em meio ao clero francês no fim do século XVIII. Se o princípio “afiliação maçônica = sacramentos dúbios” fosse realmente verdadeiro, aplicar-se-ia a sacramentos conferidos por sacerdotes também. Isso tornaria “duvidosos” todos os batismos conferidos na França desde o século XVIII. Afinal de contas, quem sabe quais padres franceses eram “maçons ocultos” e quais não eram?

* * * * *

Note-se por favor que, a despeito do que precede, eu não concedo a alegação factual de que o Cardeal Liénart realmente tenha sido um maçom. Meu objetivo aqui é demonstrar que, se estivesse o Cardeal Liénart sido realmente maçom, não se poderia por essa razão atacar a validade dos sacramentos que ele conferiu.

O argumento lienartista, então, vai contra as presunções fundamentais que a lei canônica, a teologia moral e a dogmática estipulam a respeito da validade dos sacramentos em geral, e da intenção do ministro de Ordens Sacras em particular. É contradito pela prática da Igreja no passado e, por fim, desemboca em absurdidades manifestoa.

Numa palavra, é um argumento firmado na ignorância.


BIBLIOGRAFIA


BILLOT, L. De Ecclesiae Sacramentis. Rome: Gregorian 1931.
DANIEL-ROPS, H. The Church in the Eighteenth Century. London: Dent 1960.
DOHENY, W. Canonical Procedure in Matrimonial Cases. Milwaukee: Bruce 1942.
GASPARRI, P. Tractatus de Sacra Ordinatione. Paris: Delhomme 1893.
LEEMING, B. Principles of Sacramental Theology. Westminster MD: Newman 1956.
LEO XIII. Bull Apostolicae Curae, 13 September 1896
LONSWAY, Jesse W. The Episcopal Lineage of the Hierarchy in the United States: 1790–1948.
MANY, S. Praelectiones de Sacra Ordinatione. Paris: Letouzey 1905.
MCMANNERS, J. Church and Society in Eighteenth-Century France. Oxford: University Press 1998.
NAZ, R. “Francmaçonnerie”, Dictionnaire de Droit Canonque. Paris: Letouzey 1953. 1:897-9.
————. “Intention,” op. cit. 5:1462–64.
WANENMACHER, F. Canonical Evidence in Marriage Cases. Philadelphia: Dolphin 1935.

(Carta, Agosto de 2003)


Anexo: Mons. Liénart era maçom?

— Don Francesco Ricossa

Façamos primeiro algumas considerações gerais:

  • A maçonaria é, por definição, uma sociedade secreta, da qual a maioria de seus membros são geralmente desconhecidos.
  • É um método comum na maçonaria vazar falsas alegações sobre a filiação de eclesiásticos (ou outros) em sua seita, seja para difamar seus inimigos (como foi o caso com Bento XIV e Pio IX) [1], seja para enganar.
  • Também aconteceu que os católicos de boa vontade foram enganados por alegadas revelações de maçons convertidos, intencionalmente inventadas pelos próprios maçons para desacreditar os católicos. Lembre-se do caso do Léo Taxil.

Portanto, é necessário proceder com a máxima cautela ao discutir estes argumentos e verificar bem as fontes.

Dito isso, abordemos nosso assunto nos perguntando com precisão: quais são as fontes? Aquele que afirma com absoluta certeza que Liénart era maçom, afirma que existem várias fontes para prová-lo: o Marquês de la Franquerie, as críticas Chiesa viva e Sí sí, no, no, e finalmente o próprio Dom Lefebvre admite o fato. O que poderia ser mais certo?

Mas se verificarmos as fontes, descobrimos:

  • que Dom Lefebvre cita Chiesa viva como uma fonte;
  • que a Chiesa viva, por sua vez, cita o Marquês de la Franquerie como sua fonte;
  • que estas são também as fontes do Si, si, no, no.

Então, o único testemunho é o do Marquês de la Franquerie (L’infaillibilité pontificale, pp. 76, 80 e 81 da 2ª edição). Entretanto, nos lugares citados, as fontes nas quais o autor baseia sua afirmação não aparecem (exceto por uma confiança recebida em Lourdes de um certo Sr. B, que se apresentou como um luciferiano convertido...).

Essa falta de documentação é agravada por informações igualmente implausíveis (mesmo o Cardeal Antonelli, Secretário de Estado das Relações Exteriores em Lourdes). Antonelli, Secretário de Estado de Pio IX, teria sido maçom; enquanto que, pelo contrário, Dom Antonelli foi muito fiel à Igreja e ao Papa, cf. op. cit., p. 76) e por um crédito acrítico dado a aparições certamente falsas (cf. pp. 104, 106, mais a errata corrigida na mesma p. 106, Paulo VI, verdadeiro Papa, mas prisioneiro e... futuro mártir!).

Isto seria suficiente para dizer: Testis unus, testis nullus, e quod gratis affirmatur, gratis negatur (o que é afirmado sem prova, também pode ser negado sem prova). Mais uma razão, havendo um testemunho contrário, segundo o qual Liénart não era um maçom:

“Com relação ao Cardeal Liénart, aqueles que afirmam saber não são gananciosos por exatidões. Eles afirmam que ele foi iniciado em 1928 em uma oficina da Grande Loja da França e que, na véspera da guerra de 1939-1940, ele havia atingido o 30º grau.

No entanto, não só o referido prelado nunca apareceu nos registros da rua Puteaux, mas sabe-se agora que ele devia a certos dignitários da Grande Loja da França que não se tornassem Arcebispo de Paris por ocasião da morte do Cardeal Verdier.

Os fatos acabam de ser revelados pelo Barão Yves Marsaudon, em suas memórias. O Barão Marsaudon sabia muito sobre as relações do Vaticano com a Maçonaria, pois era simultaneamente Ministro Plenipotenciário da Ordem Soberana de Malta e Ministro de Estado do Conselho Supremo da França do Rito Antigo e Aceito da Escócia.

Um dia, o Grande Mestre Charles Riandey pediu ao Barão que estabelecesse relações discretas entre o Conselho Supremo e o Padre Berteloot. Este jesuíta, um amigo dos maçons, estava na época tentando sugerir à Igreja uma nova política para a maçonaria tradicional. Numerosas reuniões foram realizadas, ou na rue Monsieur, a casa dos religiosos, ou na rue de Vanves, a sede da Ação Católica.

O Padre Berteloot – relata o Barão Marsaudon – me pediu uma manhã para um encontro urgente. Foi pouco antes da morte do Cardeal Verdier. Os jesuítas estavam bastante preocupados com o que aconteceria após a morte do arcebispo de Paris. Eles não queriam ouvir falar do Cardeal Liénart, considerado muito vermelho; e menos ainda do Cardeal Grente, arcebispo de Mans, membro da Academia Francesa, um notório maurrasiano, que apresentou sua candidatura sem demasiada modéstia.

“Muito discretamente, o Padre Berteloot perguntou ao dignitário maçom se ele poderia fazer algo para impedir a nomeação de um desses príncipes da Igreja para a sé vacante. O Barão Marsaudon prometeu analisar o assunto. Ele era na época venerável da pousada escocesa ‘La République’, à qual o Vice-Presidente do Conselho, Camille Chautemps, pertencia. No dia seguinte, o Secretário de Estado do Vaticano foi alertado pelo governo francês.

Assim, graças à intervenção concertada da Grande Loja da França e dos Jesuítas, o Arcebispado de Paris foi concedido ao Cardeal Suhard, Arcebispo de Rheims, que era o candidato da Companhia de Jesus.

Algum tempo depois, o Padre Berteloot não pôde deixar de fazer uma observação ao Barão Marsaudon: ‘Os maçons são realmente poderosos, mesmo no Vaticano!’

No entanto, deve-se notar que, neste caso preciso, sua influência não foi exercida por intermédio dos prelados romanos, mas através da ação do governo francês e da Embaixada da França junto à Santa Sé. Este texto não é autoritário, nem o testemunho do Marquês de la Franquerie.

Nota:

[1] Eu já havia escrito este artigo quando tomei conhecimento, através da imprensa "tradicionalista", de um livro escrito por um maçom mexicano (Sr. Jaime Ayola Ponce), no qual foi relançado o mito de um Pio IX inscrito na Maçonaria...

Infelizmente, há sempre católicos de boa fé que se deixam enganar pela propaganda inimiga, a ponto de difamar homens de Deus como Pio IX, dando demasiada credibilidade a tais supostas "revelações" de origem maçônica.

No caso de Pio IX, ele não só nunca foi um maçom, mas até mesmo um liberal, ao contrário do que comumente se acredita sobre uma "conversão" de Pio IX em 1849. Sobre este assunto, leia o que o Abbé Barbier escreve em seu "Histoire du catholicisme libéral et du catholicisme social en France" (vol. 1, pp. 204-213). Para não cansar o leitor, cito apenas o que o Abbé Barbier escreve no índice sob o título "Pie IX": "A falsa lenda de um antigo Papa liberal Pio IX" (tabela analítica, p. 39). Foi necessário recordá-lo, pela honra deste grande Papa.