O erro mentevacantista de Dom Williamson

Por Padre Anthony Cekada


O erro mentevacantista de Dom Williamson por Padre Anthony Cekada

Ratzinger, um herege? Não, só uma mente enferma.

A Sua Excelência Richard N. Williamson, Reitor do seminário da Fraternidade São Pio X em La Reja, na Argentina, é, por consenso geral, uma figura pitoresca.

Em entrevista de agosto de 2006 a Stephen Heiner, publicada depois no periódico da FSPX The Angelus, Sua Excelência respondeu a perguntas sobre um amplo leque de assuntos, e não falhou em fazer jus à sua reputação.

Um tópico de que o Bispo Williamson tratou mais longamente foi o sedevacantismo. Ora, em 1980, quando eu ainda era membro da Fraternidade São Pio X e ele era ainda um simples padre, nós tivemos uma porção de discussões muito animadas sobre isso.

O Pe. Williamson explicou-me a teoria dele sobre o porquê João Paulo II não podia ser um verdadeiro herege, e, portanto, não podia perder automaticamente o ofício papal, como defendem os sedevacantistas como eu. “Metade do cérebro de João Paulo II é liberal, e metade é católica”, disse-me ele, “Logo, ele não sabe realmente que aquilo que ele diz não é católico!”

Pareceu-me já então uma ideia perfeitamente lunática: um modernistanão é responsável pela heresia porque ele é um modernista? Batizei-a de “mentevacantismo”, das palavras em latim para “mente vazia”.

Em sua entrevista recente, o Bispo Williamson ainda está promovendo o mentevacantismo como resposta ao sedevacantismo. Sua atual explicação da teoria é mais ou menos assim: Bento XVI tem uma mente moderna “enferma”. Por essa razão, Bento não está ciente de sua heresia. Dado que não há nenhuma autoridade eclesiástica para torná-lo ciente dela, Bento não tem como fazer uma verdadeira escolha entre o dogma e a heresia. Sem essa escolha de verdade, Bento não é um herege de verdade e, portanto, ele permanece um papa de verdade.

Abaixo apresentarei a tese mentevacantista do Bispo Williamson e, em seguida, oferecerei minha própria análise dela.

I. Mente Enferma, Nada de Heresia

O argumento que o Bispo Williamson busca refutar é o dos sedevacantistas como eu. O princípio teológico geral subjacente ao sedevacantismo encontra-se em muitos manuais standard de teologia dogmática e direito canônico. Pode-se expressá-lo deste modo:

A lei divina exclui um herege público de ser validamente eleito papa e de obter a autoridade papal. Um papa que se tornasse herege, ademais, cairia automaticamente de ofício por lei divina sem necessidade de sentença declaratória nenhuma. E, em ambos os casos, é o pecado de heresia que incapacita um herege de se tornar ou de permanecer papa.

O Bispo Williamson entende esse princípio e, de fato, articulou-o muito claramente na entrevista ao Sr. Heiner: “Para alguém ser herege de tal modo a se colocar fora da Igreja Católica a ponto de não mais ter possibilidade de ser cabeça dela, i.e. Papa, ele precisa saber que está negando aquilo que ele sabe ser um dogma definido da Fé Católica, pois uma negação dessas equivale a apostasia deliberada. Tornar-se, ou continuar sendo, um católico, é uma escolha. Se eu sei o que um católico tem de crer para ser católico, e eu recuso crer nisso, aí então eu estou escolhendo ser herege ao invés de católico, e eu me coloco fora da Igreja”.

O Bispo Williamson, contudo, procura derrotar o argumento sedevacantista mediante a demonstração de que esse princípio não pode ser aplicado a Bento XVI porque: “As mentes modernas são muito enfermas, enquanto mentes, e Bento XVI tem uma mente moderna… A doença consiste em crer que não existe verdade fixa, objetiva, que exclua absolutamente o erro…. A ‘verdade’ é aquilo que a minha mente faz ser verdade. Mas a mente é feita para a verdade objetiva como os pulmões são feitos para o oxigênio, então assim como pulmões sem oxigênio ficam mortalmente doentes, assim também uma mente sem verdade exterior está mortalmente doente…. Bento XVI crê que a ‘verdade’ católica pode evoluir. Por exemplo, gravíssimas declarações da verdade católica que não têm como mudar, como o Syllabus e a Pascendi… Ele não consegue enxergar que essa doutrina católica antimoderna dos seus predecessores é de natureza tal, que não tem como mudar, e nem mesmo um Papa é capaz de mudá-la. A pobre mente dele, por mais dotada que seja, está doente daquela filosofia moderna, principalmente alemã… Como ele poderia não pensar que estava sendo ‘normal’?”

A filosofia moderna, noutras palavras, esvazia a mente da capacidade de reconhecer a verdade – e absolve o indivíduo da responsabilidade.

Com base nessas afirmações, o Bispo Williamson pretende que os leitores concluam que uma generalizada “doença da mente moderna” remove completamente a culpabilidade pela heresia e oblitera os efeitos desta para um papa herege. Bem-vindos ao mentevacantismo!

O Bispo Williamson está ciente, todavia, de que os mais perspicazes dentre seus leitores descartariam essa desculpa como mera versão mais refinada de um dos postulados do liberalismo moderno: o de que o mal é na realidade produzido por uma sociedade enferma, e, portanto, os indivíduos não são pessoalmente responsáveis por suas ações.

Para interceptar essa objeção, o Bispo Williamson evoca então “os velhos tempos”. A diferença entre agora e outrora, diz ele, é que um modernista como Ratzinger seria convocado perante o Santo Ofício, ordenado a retratar-se, ou então: “E o neomodernista teria precisado escolher, tendo sido notificado, pela autoridade da Igreja, da heresia dele…. Mas esse último recurso não está disponível aos eclesiásticos de hoje, pois eles são a autoridade!”

Sem advertências, sem heresia!

Agora aqui, fazemos uma pausa para explicar o que vem a seguir: o truque Eu-Não-Estou-Dizendo de Williamson. Ele deu o chapéu em indagadores vezes sem conta no passado. Funciona assim: O Bispo Williamson está se expandindo longamente sobre algum tópico, e ele assentou grandiosamente algum princípio geral falso (ou alguma analogia estouvada) e aplicou-o a um caso particular. Um indagador — um seminarista, um entrevistador, um leigo no pátio da igreja — convida-o então a Tirar a Conclusão Lógica Para Todos os Casos, M’Lud. E é justamente isso o que o Sr. Heiner faz, ao perguntar ao bispo: “Então os clérigos como Bento XVI são completamente inocentes do que estão fazendo?” E, como não podia deixar de ser, o Bispo Williamson imediatamente responde: “Eu não disse isso”. É claro que o senhor não disse, Excelência! Porque estaria então articulando a conclusão lógica, mas obviamente idiótica: de que os hereges não são culpáveis por suas heresias. Isso, por sua vez, demonstraria a todos exceto o mais embotado dos tradicionalistas que o seu princípio geral era conversa pra boi dormir.

Tendo realizado com sucesso O Truque em Mr. Heiner, o Bispo Williamson então esterça para longe da óbvia idiotice e, instantaneamente, passa para outro tópico: se Bento XVI está ou não está “recusando graças” dadas a ele por ser ele uma autoridade na Igreja de Deus (Este é um argumento circular, a propósito: Bento XVI não pode perder sua autoridade, pois ele possui autoridade).

Até aqui, a exposição pelo Bispo Williamson da tese mentevacantista: Um herege (Ratzinger) continua sendo papa, porque uma mente enferma (resultado da filosofia moderna ruim) impediu-o de atinar para a sua própria heresia, e não havia ninguém por perto para alertá-lo.

Ratzinger não é um herege. Ele apenas sofre de transtorno de déficit de atenção teológica…

É Dom Williamson vintage: loquaz, seguro de si, soando equilibrado, ligeiramente pop, tudo pronunciado (sem dúvida) com sotaque inglês refinado — e congestionado de falsos princípios contraditados pelos manuais de teologia dogmática e de direito canônico anteriores ao Vaticano II.

II. O Mentevacantismo Refutado

A. A “Doença” Prova que Ratzinger é Herege

O Bispo Williamson descreve os sintomas da “doença” de Ratzinger com expressões como as seguintes:  “A doença consiste em crer que não existe verdade fixa, objetiva, que exclua absolutamente o erro…. Bento XVI crê que a ‘verdade’ católica pode evoluir…. Ele não consegue enxergar que essa doutrina católica antimoderna dos seus predecessores é de natureza tal, que ela não tem como mudar…”

Essa declaração, no entanto, longe de escusar Ratzinger, na realidade prova que ele perdeu a fé — e que, portanto, ele não é papa de verdade. Isso fica claro simplesmente pela própria natureza da fé. Ela é uma virtude sobrenatural que dá absoluta certeza acerca daquilo em que se crê — Cristo é Deus, a Igreja Católica é a única verdadeira Igreja, os sacramentos dão a graça, etc.

A “doença” que o Bispo Williamson atribui a Ratzinger, por outro lado, exclui tal certeza — “não há verdade fixa, objetiva” a ser crida, porque a verdade evolui. Assim, no sistema de Ratzinger um dos elementos necessários (“propriedades”) da fé está faltando. Tirar a “certeza” da fé é como remover o hidrogênio da água: a água deixa de existir (E, em honra ao Bispo Williamson, incluiremos o axioma escolástico apropriado aqui: Negatio proprietatum est deletio naturae — Negue as propriedades de alguma coisa e você destrói a natureza dela).

Assim, a virtude da fé (verdade que não muda = certeza) e a doença de Ratzinger (verdade que evolui = sem certeza) são um sinal certeiro de que Ratzinger não tem a fé.

E, para um papa, quais são as consequências? “Ele automaticamente perderia o poder pontifício”, explica o Cardeal Billot, “pois, tendo se tornado um descrente [factus infidelis], ele pôs-se fora da Igreja por sua própria vontade.” (De Ecclesia Christi [Roma: Gregoriana 1927] 1:632)

Assim, a própria “doença” que o Bispo Williamson quereria usar para eximir Ratzinger de heresia, pelo contrário, condena Ratzinger por heresia — e despoja-o do papado. Grosso modo:

  • Não tem certeza = não tem fé.
  • Não tem fé = não é católico.
  • Não é católico = não é papa.

B. Ratzinger Condenado por Seu próprio Juramento

O Bispo Williamson argumenta que Ratzinger também não é culpado pela heresia dele porque: “Bento XVI crê que a ‘verdade’ católica pode evoluir. Por exemplo, gravíssimas declarações da verdade católica que não têm como mudar, como o Syllabus e a Pascendi, ele as chama de meras ‘ancoragens substanciais’ na doutrina da Igreja, querendo dizer que a Igreja podia ancorar ali, e utilmente ancorou ali por um tempo, mas nos tempos modernos a Igreja precisa de novas ‘ancoragens substanciais’ em doutrina”. Aqui, ao atribuir a Ratzinger uma crença explícita na evolução dogmática, o Bispo Williamson sem querer martela outro prego no caixão do herege.

O Syllabus e a Pascendi do Papa São Pio X condenam a evolução do dogma como uma heresia modernista. E Ratzinger, antes de ser ordenado subdiácono, jurou sobre o Evangelho o Juramento Anti-Modernista de rejeitar e condenar esse erro.

Ao prestar esse juramento, o seminarista Ratzinger afirmou publicamente que ele conhecia a regra da fé. Ele tornou-se, assim, culpável pelo pecado de heresia cometido contra ela: “A partir do momento em que alguém sabe suficientemente da existência da regra da fé na Igreja, e que num ponto qualquer, seja qual for, por qualquer motivo e de qualquer forma, se recusa a submeter-se a ela”, afirma o canonista Michel, “a heresia formal está completa” (“Héresie, Héretique,” Dictionnaire de Théologie Catholique [Paris: Letouzey 1909-] 6:2222).

Logo, Ratzinger possuía conhecimento suficiente. Novamente, a “doença” de Ratzinger — crer na evolução do dogma —condena-o como herege ao invés de desculpá-lo.

C. Um Papa Louco Perde o Ofício

A equação absurda que o Bispo Williamson faz entre má filosofia e uma espécie de doença mental pinta um retrato de Ratzinger inteiramente divorciado da realidade: “A pobre mente dele, por mais dotada que seja, está doente daquela filosofia moderna, principalmente alemã, que desengancha a mente de seu objeto, o que é como interromper o acesso dos pulmões ao oxigênio”.

Mas essa tentativa específica de desculpar Ratzinger por heresia leva a um outro problema que o Bispo Williamson não previu: “Louco” é uma faca de dois gumes.

“Excluídos como incapazes de ser validamente eleitos [papa] estão… os afligidos por insanidade habitual…. Caindo em insanidade certa e perpétua, o Romano Pontífice perderia automaticamente a jurisdição pontifical… Pois a insanidade certa e perpétua do Romano Pontífice (não duvidosa ou temporária) é equivalente à morte, e pela morte o Romano Pontífice certamente perde sua jurisdição” (Wernz-Vidal, Jus Canonicum [Roma: Gregoriana 1938] 2:415, 2:452).

Assim, se Ratzinger é louco demais para ser um herege, ele também é louco demais para ser um papa de verdade.

D. Confundindo “Pecado” com “Crime”

O Bispo Williamson sugere que professar heresia não tem consequências para um herege — e principalmente para um papa herege — a não ser que, e não antes que, o herege seja de algum modo alertado.

“Nos bons e velhos tempos”, diz o Bispo Williamson, “um Papa Católico punha teólogos muito inteligentes e ortodoxos no Santo Ofício, anteriormente conhecido como a Inquisição, e estes interrogariam um neomodernista assim: ‘Você escreveu que aPascendi é só uma “ancoragem substancial”. Isso significa uma heresia. Ou você se retrata, ou o Papa tem autoridade para excomungá-lo. Por gentileza, escolha’.”

Essa declaração, todavia, demonstra que o Bispo Williamson confundiu a distinção que os canonistas fazem entre dois aspectos da heresia:

  1. Moral — heresia enquanto pecado (peccatum) contra a lei divina.
  2. Canônico — heresia enquanto crime (delictum) contra a lei canônica.

A distinção moral/canônico é fácil de apreender aplicando-a a algo um pouco mais familiar a todos nós, o aborto. Há dois aspectos sob os quais podemos considerar o aborto:

  1. Moral: Pecado contra o 5.º Mandamento que resulta na perda da graça santificante.
  2. Canônico: Crime contra o cânon 2350.1 do Código de Direito Canônico que resulta em excomunhão automática.

Em caso de heresia, as advertências só entram em cena para o crime canônico de heresia. Elas não são necessárias como condição para cometer o pecado de heresia contra a lei divina. O canonista A. Michel traça a clara distinção para nós: “A pertinácia não inclui necessariamente obstinação prolongada por parte do herege e advertências pela Igreja. Uma condição para o pecado de heresia é uma coisa; uma condição para o crime canônico de heresia, punível por leis canônicas, é outra coisa” (“Héresie”, in DTC 6:2222). É o pecado público de heresia nesse sentido – ofensa contra a lei de Deus –, por parte de um papa, que o despoja da autoridade de Cristo.

Logo, as advertências que o Bispo Williamson contempla não são condições necessárias para concluir que Ratzinger é um verdadeiro herege e, portanto, não é um verdadeiro papa.

* * * * *

Neste ponto, uma questão ocorre naturalmente: Por que raios ninguém na Fraternidade (e na Resistência, dissidência da Fraternidade começada pelo próprio Williamson, N. do E.), especialmente um cérebro conceituado como o Bispo Williamson, jamais parece reconhecer erros aparentemente tão fundamentais e corrigi-los?

O motivo é a mentalidade partidária da Fraternidade São Pio X. Quando você entra para a organização, espera-se que você honre as noções recebidas (données) formuladas durante “A Era do Arcebispo”. Assim, como indiquei noutra parte, um membro da Fraternidade deve repetir reverentemente as “posições da Fraternidade” sobre sua natureza (sociedade de vida comum sem votos), sua supressão (inválida), a Missa Nova (má, mas ilegalmente promulgada), Vaticano II (não vinculante), resistir a um verdadeiro papa (justificado pelos teólogos, o papa é como um “pai ruim”), sedevacantismo (“cismático”, não-católico), a excomunhão do Arcebispo Dom Lefebvre (“Roma diz que Não!”), etc.

Toda investigação e escrita teológica é útil e encorajada tão somente na medida em que confirme a linha do partido sobre cada um desses pontos. Pensamento independente, ou lealdade a alguns princípios acima da Fraternidade (em dogma, direito canônico, etc.) é prova de “un mauvais ésprit” (mau espírito) e vale uma passagem para Mumbai. Então, como um colega e ex-membro da FSPX assinalou em 1984, as únicas pessoas que sobrevivem a longo prazo na FSPX são aquelas que não pensam. O que a Fraternidade trata como especialmente tóxico é a eclesiologia standard — aquelas áreas da teologia dogmática católica que explicam a natureza da Igreja, a autoridade do Papa e a necessidade de estar visivelmente unido a ambos. Os seminaristas da FSPX aprendem sobre esses tópicos, contaram-me membros da FSPX, a partir de “notas” formuladas por professores de seminário da FSPX na Europa, ao invés dos manuais de teologia dogmática pré-Vaticano II. Perigosos demais, sem dúvida.

Visto a esta luz, o argumento absurdo que o Bispo Williamson propõe para desculpar a heresia de Ratzinger e, destarte, evitar as inevitáveis consequências que dela se seguem — uma mente doente — cai como uma luva. Lealdade à linha do partido acima de tudo! Então, quando o Bispo Williamson concluiu sua entrevista cantando alguns versos do musical Oklahoma — “Há sabedoria na ópera e até mesmo em musicais!”, diz ele — outra canção me veio à mente, esta do H.M.S. Pinafore sde Gilbert e Sullivan.

Talvez quando ele sentir vontade de cantar, Sua Excelência deveria experimentar algumas estrofes da música cantada por Sir Joseph Porter, Primeiro Lorde do Almirantado:

“Eu sempre votei na indicação do meu partido, sem mais, E eu nunca pensei em pensar por mim mesmo, jamais. (Não, ele nunca pensou em pensar por si mesmo, jamais!) E eu pensava tão pouco, que a recompensa minha Foi me fazerem governante da Marinha da Raiiinha!”

Mentevacantismo, ahoy!