Por Seminarista Paulo Cavalcante

O MATRIMÔNIO EM TEMPOS NORMAIS
Em tempos normais da Igreja, i.e., quando a jurisdição se encontra em ato através dos bispos e seus sacerdotes incardinados em comunhão com o Papa, donde emana toda autoridade, se exige a forma canônica ordinária para a validade do matrimônio entre católicos, como preceitua o Código de Direito Canônico (cân. 1094):
“Somente são válidos aqueles matrimônios que se celebrem ante o pároco, ou ante o ordinário do lugar, ou ante um sacerdote delegado por algum dos dois e ante dois testemunhos pelo menos.”
Não é necessário ressaltar que no estado atual da Igreja, não existem párocos, ordinários e nem delegação, pois todos esses títulos, designações e apontamentos emanam de atos jurisdicionais. O movimento tradicional não possui jurisdição em ato ou habitual, mas apenas uma jurisdição sacramental de suplência, restrita e absolutamente temporária, e.g.: no caso do Sacramento da Penitência, a suplência não confere jurisdição, mas Cristo e a Igreja suprem o vício de jurisdição em cada absolvição, visto que o sacerdote é, pelo seu caráter sacerdotal, metafisicamente ordenado a dar tal absolvição. A jurisdição normalmente necessária não confere ao sacerdote o poder de confessar, mas dá-lhe um sujeito sobre o qual exercer o seu poder.
O que ocorre então com a validade do sacramento do matrimônio? Devem ser supridos por um sacerdote tradicional vago e sem delegação? O Código de Direito Canônico previu essa situação, e estabeleceu uma forma canônica extraordinária.
O MATRIMÔNIO EM TEMPOS DE CRISE
Quando não se pode ter ou ir a qualquer pároco, ordinário, ou sacerdote delegado presente no casamento, se realiza a forma canônica extraordinária, conforme exigido pelos cânones sagrados (cân. 1098, i):
“Se não se pode ter ou não se pode recorrer sem incomodidade grave a nenhum pároco, ou ordinário, ou sacerdote delegado que assista ao matrimônio ao teor dos cânones…, em perigo de morte é válido e lícito o matrimônio celebrado ante duas testemunhas.”
Nota: No contexto atual não se considerará se a causa é por desconforto grave ou capricho, mas simples e absolutamente pela ausência física de qualquer pároco, ordinário, ou sacerdote delegado. Ainda assim, nos interessa elucidar:
Pela mesma razão, este cânon não teria aplicação quando não houvesse grave desconforto: a) o sacerdote local pode ser chamado e pode responder ao chamado; b) ou comparecer perante ele; c) ou vá apresentar-se noutra paróquia perante o seu pároco. E o mesmo deve valer para o Ordinário ou para o sacerdote por ele delegado ou pelo pároco do território, mas não para o sacerdote que não tem delegação.
O desconforto grave pode consistir em alguma perda notável, moral ou material, de saúde, riqueza, fama, etc., de um dos contratantes, ou também do pároco, ordinário ou delegado, ou o bem público. Assim, declarou a C. P. Interpr. em 3 de maio de 1945 (AAS 37, 149). Ademais, o desconforto deve ser julgado moralmente, e o erro sobre a sua gravidade não invalidaria o casamento (Cf. Rota Romana, 29 de julho de 1926 - Decis. 18, 288)
Se houver outro padre (que não seja pároco, nem ordinário, nem delegado) que possa assistir ao casamento, deverá ser chamado, devendo, juntamente com as testemunhas, assistir ao casamento, sem prejuízo da sua validade se for celebrada apenas perante testemunhas (cân. 1098, ii). O sacerdote requerido para tal deverá comparecer, salvo se for dispensado por justa causa.
A presença deste sacerdote, como diz o cânon, não é exigida para a validade, embora o fosse para a licitude se ele puder ser facilmente encontrado. Não é necessário procurá-lo com desconforto se não estiver ao alcance.
Communis objectio - “Talvez, em algum lugar, exista um padre da época de Pio XII que possua jurisdição e, portanto deveriam seguir-se as consequências de tal possibilidade de existência.”
Respondeo dicendum quod - Primum, a existência de tal padre deve ser afirmada com base em evidência material e não meramente moral. Daí derivaria a obrigação de todos os que fazem essa objeção a adotarem o procedimento de realizar uma pesquisa séria e profunda a respeito da existência de tal sacerdote no território onde o casamento for realizado. Essa nunca foi a praxis do movimento tradicional, mas suponhamos então que tal medida seja adotada por algum grupo, e a evidência material da existência de tal padre se prove, então surgem outras problemáticas, que serão expostas a seguir.
Secundum, distinguo: se ele pertencer ao Novus Ordo, se encaixa perfeitamente como um caso de desconforto grave para a fama, ou perda moral de um casal católico (já que o clérigo em questão aderiu publicamente a uma falsa religião), ou dependendo de onde ele se encontre, no caso de perda material.
Immo vero, caso não haja nenhum desconforto grave, i.e., que esse suposto padre seja non una cum e esteja perto do casal, só ele tem o direito de celebrar o matrimônio do casal, e se um padre pertencente ao movimento tradicional (padre vago e sem jurisdição habitual) celebrasse, incorreria, sem dúvidas, em invalidade do sacramento, além de sacrilégio e usurpação.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS EM TEMPOS NORMAIS E IMPOSSIBILIDADES DOS TEMPOS DE CRISE ATUAIS
Assim foi instruído o clero brasileiro no ano de 1955 através da Revista Eclesiástica Brasileira (pág. 162–163)
“Numa hipótese em que as partes, após se separarem, quiserem casar com outra pessoa, o pároco veja primeiro se é certo que no ato civil as partes estavam em condições de se aplicar o cân. 1098, ou não. O resultado de tal inquérito deve ser enviado ao Ordinário. Este julgará se é certo que do ato civil não provenha o impedimentum ligaminis. Quando, porém, depois do inquérito ficar alguma dúvida, "quaestio ordinarii processus tramite definienda est", como já antes foi explicado. Se for verificado que no ato civil os cônjuges estavam certamente nas condições indicadas pelo cân. 1098, é certo que se casaram in facie ecclesiae. Portanto, deverão ser considerados casados até se provar o contrário. Ora, esta prova do contrário somente pode ser efetuada pelo juiz eclesiástico, o qual é exclusivamente o Ordinário do lugar ou o tribunal por ele instituído e autorizado. Não se poderá conceder licença para outro casamento senão depois da sentença do tribunal, constatando-se que o ato civil fora inválido. O pároco, em tal caso, nada pode fazer, senão denunciar o fato ao Oficial da diocese ou ao Ordinário. Vejam então, estes, se é possível e necessário instaurar um processo canônico ou, caso a dúvida provier de um dos impedimentos enumerados no cân. 1990, um processo [jurídico-legal] simplificado, descrito lá nos cânones 1990–1992.
O único caso, portanto, em que tais pessoas podem, sem mais, contrair outro casamento, é quando o Ordinário ou o pároco, tendo consultado o Ordinário, obtiver a certeza moral de que no ato civil, os contraentes não estavam nas condições enumeradas no cânon 1098. Para todos os outros casos, é necessária uma sentença judicial, exclusivamente reservada à autoridade competente, bem como da licença do Ordinário.”
Por direito e instituição divina, existem dois poderes na Igreja: ordem e jurisdição, isso nos explica o Pe. Pietro Parente e o Pe. Antonio Piolanti em sua obra Dizionario di teologia dommatica per laici, 1943, pág. 45:
“O poder eclesiástico se divide em poder de ordem e poder de jurisdição. O poder de ordem é imediatamente destinado à santificação das almas e à oferta do sacrifício da Missa e à administração dos sacramentos. O poder de jurisdição, por sua vez, é imediatamente destinado ao governo dos fiéis para a vida eterna. É exercido pelo ensino autorizado das verdades reveladas (magistério sagrado); pela promulgação de leis (poder legislativo); pela decisão autêntica das causas suscitadas entre os sujeitos (poder judiciário); para a aplicação de sanções penais contra os transgressores das leis (poder coercitivo)”.
Em outras palavras os dois poderes são realmente diferentes, mas estão intimamente ligados por uma relação mútua, eles diferem na origem, com efeito, a ordem é conferida com um sacramento adequado, enquanto a jurisdição é concedida para a missão canônica; e [eles diferem] por sua propriedade, uma vez que o uso válido da ordem, geralmente, não pode ser removido, enquanto a jurisdição pode ser revogada. No entanto, estão mutuamente relacionados, uma vez que a jurisdição pressupõe ordem e vice-versa, o exercício da ordem é regulado pela jurisdição.
Também nos ajuda a entender mais a fundo essa questão, a distinção e a unidade entre Missio e Sessio, tão inerentes à Igreja que, são aprovadas pelo Código Direito Canônico, tanto universalmente como em particular.
“Instituição divina, a hierarquia sagrada inclui, no que diz respeito à ordem (ratione ordinis): Bispos, sacerdotes e ministros, e no que diz respeito à jurisdição (ratione jurisdictionis): o pontificado supremo e o episcopado subordinado…” (cânon 108.iii).
Assim, A hierarquia sagrada, una e única, inclui, no entanto, DUAS rationes: a ratio ordinis está sob a Missio, a ratio jurisdictionis sob a Sessio.
O correto posicionamento sobre esse e outros problemas são perfeitamente explicados pelo Pe. Belmont no seguinte texto publicado no Cahiers de Cassiciacum 6, 1981:
“Admitimos perfeitamente que na situação de anarquia em que nos encontramos, haja uma suplência divina a favor dos fiéis quanto ao poder de santificação da Igreja. Mas, ao que parece, três fatores são necessários para a existência de tal suplência (fora dos expressamente previstos em lei):
1. A necessidade geral e não um caso particular;
2. Impossibilidade de recurso ao Órgão de Fiscalização. É a Autoridade que julga sobre os atos sacramentais que devemos realizar, uma deficiência acidental da Autoridade não pode dar lugar à suplência. Se a deficiência é essencial e habitual, está em jogo a própria existência da autoridade;
3. Um fundamento real sobre quem deve agir em virtude da suplência.”
Tal fundamento só pode ser o caráter impresso pelo Sacramento da Ordem.
E isso porque o sacerdote católico possui esse caráter sacerdotal que Nosso Senhor Jesus Cristo e a Igreja suprem para fazer agir o caráter, cujo exercício normal é impedido para a ruína das almas.
Excluem-se, portanto, os atos de pura jurisdição (julgamentos matrimoniais reservados a um ordinário ou a um tribunal, dispensa do impedimento do casamento, concessão de indulgências) que não cometam o caráter sacramental, e os atos onde o sacerdote não seja senão ministro extraordinário (confirmações, conferimento de ordens menores).
CONCLUSÃO
Este breve estudo chega à conclusão de que as resoluções práticas nos tempos de crise atuais revelam a complexa dinâmica entre os poderes de ordem e de jurisdição na Igreja Católica, especialmente no que tange aos atos sacramentais e jurisdicionais. Em situações de normalidade, a Igreja, através de sua estrutura hierárquica, assegura que o exercício do poder de ordem e jurisdição dos padres e dos tribunais competentes se realize conforme os preceitos canônicos e com a autoridade devidamente concedida pelo Ordinário, que por sua vez recebe o mesmo do Papa, assim como as Congregações Romanas. No entanto, nos tempos de crise, a Igreja se vê diante da necessidade de suplência divina para garantir a santificação das almas, desde que essa suplência se baseie em uma necessidade geral, e.g., há uma conditio sine qua non que para salvar-se deve-se estar em estado de graça e possuir os meios para manter o mesmo estado, daí vem a necessidade geral da administração do sacramento da penitência, da extrema-unção, celebração da Santa Missa, sem mencionar de que para isso são necessários sacerdotes validamente ordenados, o que também fundamenta as consagrações episcopais sem mandato apostólico. De fato, tais Bispos foram validamente e também, em nossa opinião, pelo menos em alguns casos, consagrados licitamente; mas eles são, no entanto, da maneira mais absoluta, privados de jurisdição, uma vez que o Bispo recebe jurisdição de Deus somente por meio da mediação do Papa, o que está excluído no nosso caso.
Embora essa suplência seja uma possibilidade reconhecida, ela não abrange os atos que envolvem puramente a jurisdição, como os julgamentos matrimoniais ou a concessão de dispensa, que exigem uma decisão formal de um tribunal ou do Ordinário. Dessa forma, a integridade da estrutura eclesiástica se mantém através do reconhecimento de que, mesmo em tempos de crise, a ordem sacramental e a jurisdição devem ser distinguidas, de modo a não só proteger a vida espiritual dos fiéis, mas também a visibilidade da Igreja, e a justiça (dar a cada um o que é de seu direito) que procede desse reconhecimento, i.e, não devemos reconhecer como válidas nenhuma usurpação de faculdades que dizem respeito a atos jurisdicionais próprios da Autoridade em virtude da recepção do poder da Ordem, seja ela fracionada ou em sua plenitude.
Assim, é imprescindível que o movimento sedevacantista, apesar das dificuldades, preserve a distinção (e falta de relação deles atualmente) entre esses dois poderes, garantindo que as resoluções práticas em tempos de crise sejam tomadas com base na salvaguarda da fé, principalmente no que tange aos princípios basilares da eclesiologia (isso evitaria a criação de hierarquias paralelas, levando os envolvidos ao cisma, em princípio capital) e da dignidade dos sacramentos.
Assim, a crise não deve ser vista como uma justificativa para o abandono das normas, mas como uma oportunidade para reafirmar a necessidade da restauração da ordem eclesiástica. Pois, se clamarmos possuir tal faculdade que é própria da Autoridade, já não estaríamos em crise, pois não estaríamos apenas subsistindo na Misso da Igreja, mas seríamos portadores da Sessio, e portanto detentores da Missio, e assim, teríamos também não só o poder para decretar um matrimônio inválido e dar dispensas para que os fiéis se casem novamente, mas poder para resolver a crise em sua totalidade, i.e., eleger um papa. O que já foi mostrado por nós, incansavelmente, ser um disparate.
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